Highways do céu: por dentro do fantástico mundo das Aerovias

Hamlet e as Aerovias

Olhe agora para o céu. Quantos aviões você vê? Nove chances em dez de que não viu rastro de turbina algum. A menos que more perto de algum aeroporto, heliponto, aeroclube… Certo? Não exatamente. “Há mais aviões entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”, diria Hamlet, se fosse controlador de tráfego aéreo do Reino da Dinamarca.

Não que estejam à vista. Uns, descendo por aqui, outros, decolando ali, mas muitos, muitos mesmo, podem estar bem em cima do seu café expresso. Só que a mais de dez quilômetros de altura.  Camuflados pelas nuvens, na maioria das vezes, percorrem os traçados difusos no espaço. Sobrevoam o céu em rodovias virtuais que se entrelaçam num complexo de teias hermeticamente coordenadas, por onde cruzam itinerários aéreos extremamente precisos.

São as chamadas aerovias. Rotas sobre as quais objetos mais pesados que o ar riscam o espaço aéreo diariamente, levando consigo, só no Brasil, mais de 100 milhões de pessoas por ano.

Mas afinal, como funcionam essas estradas invisíveis do céu? Onde encontrá-las? Em que altura? Quem as controla? Como saber a rota que o piloto escolheu no seu próximo voo da ponte aérea?



Antes de tudo, vamos às definições. Conforme descreve, tecnicamente, a Instrução do Comando da Aeronáutica 100-37, uma aerovia é toda área de controle, ou parte dela, disposta em forma de corredor. Para uma assimilação mais genérica, podemos dizer que uma aerovia é uma trajetória desenhada sobre coordenadas do espaço aéreo, dotada de informações específicas (identificação, posicionamento, rumo, altitude, etc.), destinada ao voo controlado de uma aeronave.

As aerovias são traçadas de modo a permitir que o piloto, através de seu equipamento de navegação, consiga navegar com segurança e precisão. São rotas aéreas que interligam certas posições pré-estabelecidas no mapa (referentes a instrumentos no solo ou coordenadas criadas para orientação, os chamados fixos) com altitudes e direções e larguras variadas. Ou seja, muito mais do que uma simples reta, é um espaço com um volume considerável.

Uma espécie de tubo virtual, você diria? Quase isso. Ocorre que as aeronaves podem voar sobre a referida trajetória, desenhada no mapa, em diversas altitudes (níveis de voo). Exemplo: numa aerovia cuja altitude mínima para voo seja de 15 mil pés (aprox 4,5 Km), o avião poderá voar – conforme as normas que se aplicam à rota – em níveis de voo variados, digamos, até 24 mil pés (aprox 7,3 Km). Esses níveis de voo são separados verticalmente a cada 1000 pés: 15 mil pés (FL150), 16 mil pés (FL160), 17 mil pés (FL170), etc. Assim, com devida licença às asas da imaginação, pensemos numa aerovia como um muro que começa no meio do céu, formado por tubos empilhados verticalmente, dentro dos quais voariam as aeronaves (pensa que é fácil descrever o invisível?). Pois assim é no mundo inteiro. E já há um punhado de décadas.

Ilustração simbólica do fluxo aéreo mundial (WikiCommons)
Ilustração simbólica do fluxo aéreo mundial (WikiCommons)

Tipos de Aerovias

Há, no entanto, algumas particularidades nessa orientação vertical.  As aerovias estão divididas em dois grupos:

Aerovias Superiores
Aquelas cujos voos ocorrem acima de 24.500 pés (7.468 metros)

Aerovias Inferiores
Aquelas cujos voos ocorrem abaixo de 24.500 pés (7.468 metros)

Compreender esta divisão é algo importante, já que cada qual agrupa modelos bem diversos de voo. As rotas superiores são usadas, em geral, por jatos que voam mais alto. Cias aéreas utilizam as aerovias de alta (superiores) para suas aeronaves pressurizadas já que suas altitudes de cruzeiro superam muito o limite de 24.500 pés. Já as aerovias de baixa (inferiores) são usadas por aviões de menor porte, turboélices e, em alguns casos, helicópteros, como no caso das rotas sobre a Bacia de Campos no Estado do Rio de Janeiro.

As próprias Cartas de Rotas (Enroute Charts – ENRC) – mapas destinados aos pilotos, onde estão dispostas as aerovias – são criadas a partir das necessidades destes grupos: há modelos exclusivos às aerovias de alta e às de baixa.

Na figura abaixo, é possível ver um exemplo de um trecho de uma ENRC (L2) que corresponde às rotas inferiores na região do Distrito Federal.

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Carta de Rota – ENRC L2

Cartas como a da figura acima, são desenvolvidas pelo Instituto de Cartografia Aeronáutica (ICA), órgão subordinado ao Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) que provê os serviços de navegação aérea no País e por extensão é o gestor das aerovias brasileiras. O DECEA administra atualmente um total de 258 aerovias: 144 referentes ao espaço aéreo superior (aerovias de alta) e 114, ao inferior (aerovias de baixa).

Segundo o Capitão Especialista em Controle de Tráfego Aéreo Marcelo Marques Lobo, da Subdivisão de Elaboração de Procedimentos e Espaço Aéreo do ICA, há ainda de se destacar uma importante evolução em curso nessas rotas brasileiras: a transição das rotas convencionais, baseadas nos auxílios localizados em solo, para as aerovias RNAV, orientadas por satélites a partir de aviônicos embarcados na própria aeronave.

Atualmente, 77% das aerovias de alta já viabilizam a navegação aérea orientada por satélites. “A meta é todas as aerovias de alta operarem RNAV até 2016”, afirma o oficial.

Por exemplo: num voo Rio-São Paulo 

Para finalizar esse breve sobrevoo nas highways do céu do País, vamos a um exemplo da dinâmica dos voos nas rotas de uma região de grande fluxo de tráfego aéreo, conhecida da maioria de nós: o chamado “tubulão”, que abrange o espaço aéreo entre o Rio de Janeiro e São Paulo.

Quem voou recentemente entre os aeroportos Santos Dumont e Congonhas deve ter notado como no sentido terra da garoa, geralmente, após decolar e ganhar altitude ao longo do litoral carioca, os aviões continuam seguindo sobre o mar durante um bom tempo até já bem próximo do destino final em São Paulo. Na volta, porém, isso não ocorre. O voo é mais sobre o continente e não margeia as praias da capital fluminense.

Não é nenhuma coincidência. Observe na Carta de Rotas abaixo (um recorte da ENRC H2 – mapa das aerovias superiores que abrange, dentre outras regiões, o Sudeste) as aerovias UZ37 e UZ44 – espécie de “vias Dutra do céu”, numa analogia ao demandado trecho da BR-116. A aerovia UZ37 é, geralmente, usada no sentido Santos Dumont. Note que ela se aproxima da cidade do Rio de Janeiro por dentro dos bairros da Zona Oeste da cidade. No sentido oposto, é muito comum voar pela UZ44, que como se vê no mapa, deixa um gostinho de quero mais aos que partem do Rio, margeando exatamente o litoral da cidade num voo panorâmico sobre as praias cariocas.

Rio x SP
Carta de Rota – ENRC H2

Enfim, da próxima vez que usar a ponte aérea para São Paulo, dá pra tirar uma onda com a tripulação. Ao embarcar na aeronave, faça um tipo blasé e confirme com o piloto se ele irá pela UZ44. Diga que é para você fazer aquelas imagens de Grumari!

Daniel Marinho Editor/ Redator danieldhm@decea.gov.br