São quatro horas da manhã. Da janela do avião, a madrugada é preta. E fria. Cinquenta graus negativos, diz o piloto. O excesso de zelo informativo preocupa Cristina que agora não consegue pensar em outra coisa senão na eventualidade de um furinho na lataria. A conversa com o marido esfria e ela cobre os pés da filha ao colo.
A poucas horas do pouso em Bogotá, Colômbia, o A330 sobrevoa o hiato da madrugada acima do Alto Solimões, ainda no Brasil; uma selva inóspita, recortada por um ou outro afluente amazônico e poucas habitações indígenas.
Onze mil metros acima da mata, o comandante não está sozinho. A centenas de quilômetros dali, num salão asséptico e climatizado, em Manaus, Danielle vinha acompanhando o avião numa tela de visualização radar acinzentada.
Danielle é sargento da Aeronáutica, controladora de tráfego aéreo do Quarto Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (CINDACTA IV). Pela fonia, a controladora orienta o piloto a manter o nível de voo até o próximo fixo, onde, em espaço aéreo estrangeiro, deverá chamar o controle colombiano.
Pode até passar despercebido, mas para enxergar o que os pilotos não veem, orientá-los com segurança, ouvi-los e se fazer ouvir onde quer que estejam, o controlador de tráfego aéreo precisa se apoiar numa rede de ativos técnico-operacionais de dimensões colossais – certamente desconhecidos de Cristina, marido e filha, que agora dormem entre um capítulo e outro da Peppa na tela da poltrona.
Uma infraestrutura tão ignorada quanto surpreendente, distribuída ao longo de cada canto do país. Parte dela, alocada exatamente em um desses rincões desabitados do Norte brasileiro. Geralmente, pequenas cidades abraçadas pela selva, às margens de um rio da Bacia Amazônica.
Tabatinga e a Tríplice Fronteira do Alto Solimões
É o caso de Tabatinga, no extremo oeste amazonense. A cidade incorpora uma tríplice fronteira internacional. Separa o Brasil da Colômbia e do Peru. Lá, o rio mais famoso do continente bate à porta do País. Nascido nos Andes Peruanos, o Rio Amazonas chega ao Brasil por Tabatinga, quando vira Solimões, e ruma ao leste até encontrar o Rio Negro, em Manaus. Só então, retoma o nome que lhe deu prestígio e vai procurar o Atlântico no Amapá.
Objeto de disputa de portugueses e espanhóis, em meio às tardias definições das fronteiras coloniais no oeste da América do Sul, a região sempre foi tomada como estratégica do ponto de vista militar. Nas última décadas, por conta da intensificação do contrabando de ilícitos rasgando a mata da fronteira, as Forças Armadas vêm ampliando a presença local. Não à toa, em 1973, o então Ministério da Aeronáutica instalou a primeira unidade regional do Alto Solimões, o Destacamento de Proteção ao voo, Detecção e Telecomunicações.
Hoje, mais de 40 anos depois, o Destacamento de Controle do Espaço Aéreo de Tabatinga (DTCEA-TT), denominação atualizada pela Portaria 183/CG3 de 27 de fevereiro de 2003, é a unidade do CINDACTA IV responsável pela execução de todas as atividades operacionais e de manutenção do controle do espaço aéreo da região.
Sobrevoando o DTCEA – Tabatinga (Captação: Olavo Matos/ Edição: Telma Penteado)
Graças ao destacamento, o oeste do estado do Amazonas e a tríplice fronteira internacional estão sob vigilância radar. Mais exatamente, cerca de 500 mil km2 sob o monitoramento dos controladores brasileiros. Com um raio de alcance de 400 km, o Radar LP23 monitora todos os voos em rota dessa região e encaminha os dados ao Centro de Controle de Aérea Amazônico (ACC-AZ) no CINDACTA IV.
Cobertura Radar na Fronteira
Com o mesmo raio de alcance de 400 km, o Radar Meteorológico do Destacamento fornece os dados que irão apoiar todas as operações aéreas sobre o sudoeste amazonense. Ele incorpora a detecção de dados relevantes sobre o clima atmosférico nas altitudes de voos que cruzam a área.
É também graças ao DTCEA-TT que os pilotos há mais de 11 mil metros de altitude conseguem se comunicar por voz com os controladores. São as antenas VHF da Estação de Telecomunicações Aeronáuticas do Destacamento que recebem os sinais com a voz dos pilotos e os reencaminham, por meio de antenas retransmissoras, até o CINDACTA IV, e vice-versa, com o áudio da controladora.
Em outras palavras, o Airbus A330, aquele que sobrevoava a selva na escuridão da madrugada, só pode ser identificado no radar, obter informações meteorológicas, solicitar e receber orientações do controle aéreo, dado o empenho dos cerca de 50 profissionais que diariamente emprestam perícia e experiência ao Destacamento na pequena cidade de fronteira.
Não é o único. Há seis DTCEAs nas faixas de divisa internacional do País. Isso decorre da importância estratégica para a atividade e para a defesa aérea. Tabatinga, porém, apresenta algumas particularidades. Daniel Barbosa Neves, capitão da Aeronáutica que comanda o Destacamento, reitera que “a chegada do Rio Amazonas/Solimões no Brasil, a fronteira com dois países sul-americanos, a diversidade étnico-cultural numa mesma região e a convivência com forças armadas de nacionalidades diversas transformam Tabatinga em uma localidade complexa.”
A vida em Tabatinga (AM)
Tabatinga/AM – Marco de Fronteira (Captação: Olavo Matos/ Edição: Telma Penteado)
Com uma população estimada em 65 mil pessoas, Tabatinga é conurbada com um município colombiano, Letícia, a capital do estado do Amazonas deles. O único marco limítrofe entre as cidades é um obelisco com duas bandeiras. Não há postos de fronteira com as tradicionais cancelas na rua. A fiscalização policial é realizada nas saídas e chegadas dos passageiros às cidades nos aeroportos e, eventualmente, nas grandes embarcações dos rios. Em terra firme, a população local transita livremente entre os dois países como se as duas cidades fossem uma. Não à toa, os dois municípios são interdependentes quanto ao acesso a combustíveis, bens de consumo e serviços, por exemplo.
As idas e vindas cotidianas ao Peru também são comuns em Tabatinga. Uma canoa motorizada (e dois reais) levam o viajante urbano à Isla Rosa de Yavari, no departamento peruano de Loreto. Idem, no sentido oposto. Os dois países estão separados por três minutos de barco sobre o Solimões.
Essa comutação internacional cotidiana reúne às margens do Alto Solimões uma diversidade de línguas, nacionalidades e grupos étnicos. Além dos brasileiros, peruanos e colombianos, há também os povos originários, que ainda lá permanecem nas 42 aldeias dos arredores das cidades. No caso, os índios Ticuna, etnia mais populosa da Amazônia brasileira com 54 mil índios (SESAI/ Ministério da Saúde, 2014).
Multiculturalismo
Isso se reflete no próprio efetivo do DTCEA-TT. Metade é de origem indígena. É o caso do soldado Bejarano. Filho de índia brasileira e pastor evangélico peruano, nasceu na aldeia indígena de Lauro Sodré, em Benjamin Constant (AM), ao sul de Tabatinga. Ainda na infância, morou em comunidades ribeirinhas do Peru e, posteriormente, da Colômbia, terra de sua avó materna.
Na adolescência, a mãe o trouxe de volta ao Brasil, para morar na cidade. Não foi fácil. Bejarano sofria preconceitos por ser índio; não falar português. O tempo, o estudo e a convivência com a diferença, no entanto, outorgou ao militar uma formação invejável: fluência em espanhol, em português e na sua língua indígena de origem.
Não parou por aí. “Na escola indígena o pessoal estuda, termina e depois volta à roça. Minha mãe não deixou. Exigiu que eu continuasse os estudos. Fiz o vestibular para o curso de Biologia da UEA (Universidade Estadual do Amazonas) e fui aprovado”, conta o soldado poliglota que hoje, já formado como biólogo, faz Mestrado em Ciências da Educação, em paralelo aos serviços no DTCEA-TT.
Difícil Acesso
Limitação maior em Tabatinga ainda é o acesso. Há um voo comercial por dia. De barco, leva-se até seis dias para vir de Manaus. O percurso oposto, no sentido do rio, é um pouco mais rápido, quatro dias. Ainda cansativo.
Construído em 1968, o Aeroporto Internacional de Tabatinga dista 1.105 km de Manaus. É administrado pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) desde 1980 e possui uma boa pista de 2,1 km de comprimento, apta a apoiar logisticamente a cidade e servir de base importante às movimentações da Força Aérea Brasileira (FAB) e dos Pelotões Especiais de Fronteira (PEF) do Exército Brasileiro (EB), instalados no oeste amazonense.
Letícia possui um aeroporto mais movimentado. O maior do sul da Colômbia. Recebe mais de três mil voos por ano; cerca de 220 mil passageiros e 11 mil toneladas de carga anuais.
Voos sobre um espaço aéreo de soberania trinacional, no entanto, terminaram por exigir a elaboração de regras específicas e de procedimentos de navegação aérea transacionais.
Dependendo do procedimento de aproximação para pouso em curso, por exemplo, um voo doméstico colombiano ou brasileiro precisa usar o espaço aéreo soberano do outro país para descer ao solo.
Em outro caso, um voo de Manaus com destino a Tabatinga deve contatar o controle colombiano ao iniciar a aproximação para pouso, mesmo que ainda em espaço aéreo brasileiro. O contato com a fonia do Brasil só é retomado na solicitação de pouso, propriamente, quando o piloto chama o Serviço de Informação de Voo de Aeródromo (AFIS) do DTCEA-TT.
Voos colombianos, peruanos e brasileiros utilizam regularmente os serviços de navegação aérea de qualquer um dos três países, mesmo que em seus respectivos espaços aéreos domésticos, nas adjacências das fronteiras.
Acordo Internacional para Voos sobre a Fronteira
Tudo previsto na Circular Normativa de Controle do Espaço Aéreo (CIRCEA 100-1), vulgo Carta de Acordo Operacional Tripartite para a TMA Amazônica (Brasil, Colômbia e Peru). Assinado em Lima, Peru, em 2009, o documento oficializou as definições quanto ao encaminhamento dos tráfegos e se aplica aos Centros de Controle de Área (ACC – Área Control Center) dos três países, bem como ao Controle de Aproximação (APP – Approach Control) colombiano de Letícia e ao AFIS Tabatinga.
Vale mencionar que essas normas foram acordadas com o único intuito de facilitar a prestação dos serviços de tráfego aéreo nas áreas descritas, sem que a aceitação desses limites signifique a cessão, de qualquer ordem, dos direitos de soberania que cada um dos três Estados signatários exercem sobre suas regiões.
Idiossincrasias de uma navegação aérea tripartite sobre a fronteira amazônica. Porque assim é a vida em Tabatinga para quem vive de botar avião para voar. E os desafios enfrentados numa localidade de acesso remoto e complexo, altamente dependente de recursos externos, acolhida pelo isolamento da selva, onde – como diriam os caboclos da região -“tudo é lonjura”, são transpostos diariamente por essa gente que põe radares, estações de telecomunicação, estações meteorológicas, auxílios à navegação aérea, antenas, rádios, sistemas e dispositivos diversos todos os dias para funcionar.
Para que, lá em cima, a qualquer momento, alguma menina possa assistir à Peppa no avião ao colo de uma mãe tranquila. Onze mil metros acima da selva, sobre o escuro da madrugada fria, mas segura de que há muita gente cuidando de tudo para que ela esteja, em alguns instantes, sob as primeiras luzes do amanhecer no destino das férias da família.
Lindo texto. Deixo apenas a sugestão de corrigir “Centro de Controle de Aérea de Manaus (ACC- MN)” para “Centro de Controle de Aérea Amazônico (ACC- AZ)”
Obrigado pela dica, William. A nomenclatura é extensa e, por vezes, confunde mesmo. Já foi alterado.
Está aí um texto de fácil compreensão, que prende a gente do início ao fim, com este “ar romântico” de escrita que, nos desperta a curiosidade em querer saber como será o fim. A forma simples de colocar as informações de forma clara e concisa, associada a uma boa dose de sentimentos e fatos interessantes, nos desperta a vontade em querer saber cada vez mais o funcionamento da segurança desse espaço aéreo brasileiro. Parabéns, Daniel!
Muito obrigado pela participação, Pecoraro! De fato, nossa escrita precisa de mais sensibilidade. No final, é tão somente disto que somos todos feitos. E a informação só cativa e ganha o leitor verdadeiramente quando é humanizada. Essa é proposta desse blog. Volte sempre!
Mais do que informativo, este texto é um convite a uma viagem à literatura de qualidade. Essas peças raras que quando se encontra, vale a pena ler com calma e reler pra curtir tudo de novo. Ao final saímos mais instruídos sobre Controle de Tráfego Aéreo, mais conhecedores da região Amazônica com suas peculiaridades geográficas e políticas próprias das áreas fronteiriças, mas, acima de tudo, mais tocados pelo viés humanista que Daniel nos presenteia ao mostrar as pessoas ímpares e um pouco de suas sagas. Há informação, há descoberta, há vida. Inspiração para quem vive de escrever! Parabéns e obrigada!
Gentileza sua. Obrigado pelas palavras.
Excelente matéria.
Obrigado pela participação.
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